“Um completo desconhecido”, quando Bob Dylan rompeu as fronteiras do folk

Marcelo Alves
5 min readFeb 2, 2025

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Chalamet tem uma interpretação mimética de Bob Dylan

Há momentos na história da música que são divisores de água seja para um artista ou para um gênero. Para Bob Dylan este momento foi o uso da guitarra elétrica. Quando foi vaiado e cantou apenas três canções no encerramento do festival de folk de Newport, em 1965, Dylan ainda era um jovem artista com apenas quatro anos de carreira, mas já dava dois sinais naquele momento. O primeiro é de que se transformaria em um artista maior do que o gênero em que até então estava inserido. O segundo era o seu flerte com a guitarra elétrica e uma banda que já vinha sendo mostrado em “Bringing it all back home” (1965), seu quinto álbum de estúdio.

É este Bob Dylan em transição que vemos em “Um completo desconhecido” (A complete unknown, no original). Dirigido por James Mangold, de “Johnny and June” (2005), cinebiografia de Johnny Cash, que era amigo de Dylan, o filme conta exatamente os primeiros anos da carreira de Bob Dylan. Da sua chegada em Nova York, os romances de idas e vindas com Sylvie Russo (Elle Fanning) — o nome real da namorada de Dylan era na verdade Suzie Rotolo –, a relação conturbada com Joan Baez (Monica Barbaro), que deixou a cantora e ativista muito magoada e de coração partido como ela própria admite no documentário “Joan Baez I am a noise” (2023) e seu movimento do folk para um som mais associado ao rock and roll que estourava nos anos 1960 e conquistou Dylan.

Concentrar a sua cinebiografia num intervalo de cinco anos foi um acerto de Mangold. A base do filme é o livro “Dylan Goes Eletric” (2015), de Elijah Wald, que mostra a grande transição da carreira do cantor. Seria muito complexo cobrir em um filme uma carreira de 40 álbuns de estúdio de um cantor que segue em atividade mesmo aos 83 anos.

Ao fazer esta escolha, o filme concentra seus conflitos em um tópico pessoal e um profissional. No tópico pessoal, a relação que nunca se aprofunda, que é sempre distanciada com Sylvie e Joan. Como se quisesse retratar Dylan com aquela pecha do gênio incompreendido, e, portanto, solitário e isolado, que não consegue exatamente se relacionar com ninguém além da sua guitarra e sua música. Um dos pontos que exibem bem isso é justamente a festa pós-festival de Newport de 1965, quando estão todos celebrando o fim do festival ao som de “Subterranean Homesick Blues” enquanto a câmera vai até um Dylan sozinho, sentado num sofá e fumando, completamente alheio ao que havia acontecido horas antes.

O tópico profissional é sua relação com o folk e seus expoentes. A amizade com Pete Seeger (Um sempre ótimo Edward Norton), o cabo de força com os que circundam o tradicionalista grupo que organiza o festival de Newport, que deseja manter o status quo do folk e considera traidor quem decide plugar suas guitarras. Até se “eletrificar”, Dylan talvez fosse o seu maior aliado, pois suas canções eram fantásticas, histórias muito vívidas com melodias cativantes que elevariam o folk a um patamar inimaginável naqueles tempos.

A questão é que pouco tempo depois de Dylan ter surgido, os Beatles começaram a fazer uma revolução direto da Inglaterra. E na sequência vieram os Rolling Stones e assim começava a escalada do rock and roll ao topo do mundo. É claro que aquela música iria influenciar Dylan, um jovem de 23 anos, que tinha mais em comum com os jovens dos anos 1960 do que com os senhores que tentavam se agarrar ao folk para que ele não morresse. Talvez o momento em que melhor retrate este choque geracional seja a cena que mostra um Dylan feliz e gravando com uma banda no estúdio enquanto Seeger está gravando um melancólico programa educativo em que recebe um cantor de blues que o constrange bebendo e falando algumas frases, digamos, pouco educativas para as crianças. Quando Dylan chega no estúdio é quase como a passagem do tempo, a passagem de bastão, Seeger está eclipsado, Dylan conversa com o blues man, eles bebem e fazem um som improvisado tão vívido e sedutor que só resta a Seeger tentar acompanhar com o seu velho instrumento.

O único problema nestes conflitos que o filme mostra é que eles são sempre um tanto quanto pasteurizados, quase como se não quisesse ferir suscetibilidades. Na verdade, se podemos fazer uma crítica a “Um completo desconhecido” é que ela é uma cinebiografia correta demais, limpinha demais e que voa numa velocidade de cruzeiro perpassando os eventos com várias licenças poéticas — o episódio da vaia em Newport tem algumas incoerências — e tomando o cuidado para não machucar ninguém. E é difícil imaginar que o processo da mudança de rumo de Dylan e um certo rompimento com o folk tenha sido tão limpo quanto apenas um jovem pedindo passagem.

Mesmo seus dilemas com a fama retratados através de um jovem retraído perseguido por fãs e desejos para que ele interprete um papel dentro do folk que não deseja mais não se reverberam em choques reais dentro da história.

Esse filme correto e flat se retrata na própria interpretação de Timothée Chalamet. Seu Bob Dylan é incrível como uma imitação de Bob Dylan. Ele faz um belo cover e se esforça para ser o mais próximo possível do jovem Dylan. O ator é bem sucedido nisso, mas seu Dylan é o retrato do filme de Mangold. Correto, perfeito, seguindo todos os passos previamente determinados e sem muita alma.

A força mesmo de “Um completo desconhecido” está nas canções de Dylan. Os anos 1960 foram uma década muito prolífica para Dylan. Foi quando ele apareceu com músicas como “Blowin´ in the wind”, “Girl from the North Country”, “Masters of War”, “The Times they are A-changin”, “Mr Tambourine Man” e “Like a Rolling Stone”. E como um jukebox o filme é daqueles imbatíveis. São as músicas que mostram o quão importante e fundamental Dylan é. São as letras que contam histórias que o fizeram, inclusive, romper a barreira do Nobel a ponto de ele ter sido laureado com o prêmio de Literatura em 2016.

Em resumo, “Um completo desconhecido” é como um delicioso sorvete de baunilha. Talvez o melhor sorvete de baunilha da sua vida, mas ainda um sorvete de baunilha.

Nota 8/10.

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Marcelo Alves
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Written by Marcelo Alves

Jornalista e doutorando em Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias pela Universidade Nova de Lisboa. Aqui escrevo sobre cinema, música e cultura em geral.

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