“Mickey 17”, a precarização do trabalho e o desprezo pela vida humana

Marcelo Alves
6 min read2 hours ago

--

Pattinson é um dos pontos altos do filme de Bong Joon Ho

Desde que Bong Joon Ho venceu surpreendentemente o Oscar de melhor filme por “Parasita” (2019) em 2020, criou-se pelo menos para mim uma grande expectativa sobre os futuros projetos do diretor sul-coreano. O prêmio da Academia o deu visibilidade e, certamente, gerou interesse em quem quisesse investir capital financeiro em seus futuros trabalhos.

Adaptar o livro de ficção científica “Mickey 7” do autor pouco conhecido Edward Ashton e lançado em 2022 pareceu uma escolha intrigante para um diretor que vinha de um filme com uma fortíssima crítica social como “Parasita”. Intrigante, mas não estranha, pois o universo de sci-fi que traz um tema social por trás já havia sido explorado por Bong Joon Ho em “Expresso do Amanhã” (2013).

O resultado desta empreitada finalmente chegou aos cinemas com “Mickey 17”. Oitavo longa do diretor, “Mickey 17” é uma dark comedy futurista e uma sátira política sobre a precarização do trabalho e o desprezo pela vida humana não apenas pelo sistema explorador do mercado, mas também pelos líderes que escolhemos para nos guiar para um futuro seja dentro de um recorte de um grupo social, seja como nação. No filme, Bong Joon Ho usa da comédia com tons de absurdo para refletir e criar paralelos até bem óbvios, quase desenhados, com o mundo atual.

O filme gira em torno de dois personagens equidistantes na cadeia alimentar do sistema social. De um lado Mickey Barnes (Robert Pattinson), um homem vivendo no limite e vítima de suas escolhas fracassadas que o fizeram tomar uma decisão drástica. Do outro, Kenneth Marshall (Mark Ruffalo), um político fracassado que perdera duas eleições, mas cujo dinheiro e influencia ainda o colocam no topo da pirâmide social, ainda que suas ideias variem entre o equívoco e o crime.

O projeto de colonização do planeta Niflheim une estes dois personagens. Para Marshall, ele é a volta por cima de criar uma sociedade em que ele pode comandar como um ditador bufão autocrata e seus ideais de eugenia. Na ausência de um cargo oficial, Marshall quer fundar o seu próprio mundo em Niflheim junto com seus seguidores ensandecidos usando bonés vermelhos. Qualquer semelhança com os tempos atuais da política estadunidense não é mera coincidência.

Para Mickey Niflheim é a única saída. Marcado para morrer por um agiota de quem deve uma fortuna, Mickey é o trabalhador braçal meio estúpido e sem grandes qualificações que abraça uma oportunidade bizarra para entrar na expedição e fugir da morte. Mal saberia ele, que ele se tornaria um especialista em evitar a morte, mas não de um jeito agradável.

Para partir para Niflheim, Mickey se alista num programa de “Dispensáveis”, um projeto pioneiro criado na Terra, mas dinamitado por questões éticas que Marshall quer retomar no caminho para Niflheim. O programa dos Dispensáveis consiste em criar clones infinitamente de quem faz parte dele para que o corpo desta pessoa possa ser usado em dezenas de estudos ou missões extremamente perigosas. Missões como descobrir os efeitos da radiação no corpo humano ou servir de cobaia para o desenvolvimento de uma vacina contra um vírus mortal. A única regra do programa é que só pode existir um único ser vivo naquele presente momento. Os chamados “Múltiplos”, ou seja, dois clones coabitando o mesmo espaço-tempo são proibidos e punidos com a extinção imediata da pessoa envolvida.

Quando escreveu o livro, Ashton disse que queria contar uma história que refletisse sobre uma espécie de imortalidade que fosse combinada como uma estrutura social exploradora. Por mais que tivesse feito uma série de alterações para o filme, como o próprio autor confirmou, Joon Ho manteve essa essência em “Mickey 17”. No seu filme, a vida de um Dispensável não vale absolutamente nada. Cada um dos Mickeys cumpre a sua missão de forma até resignada, mas detesta a morte e a consequente “reimpressão” que sempre vem com as memórias do clone anterior. Cada Mickey tem a memória das mortes anteriores. Num dado momento, um deles chega a dizer que “toda a nossa a vida é uma punição”.

Mickey é tratado como um experimento, uma figura dispensável, por praticamente todos os que estão na expedição para Niflheim. Além de ser tratado como um objeto vivo, Mickey ainda tem que conviver com as constantes perguntas de seus colegas: “Qual é a sensação de morrer?”. Curiosamente, Bong Joon Ho nunca deixa que esta pergunta seja respondida em todo o filme.

Mickey é a mão de obra mais barata e desprezível de um sistema opressor. A nave colônia para Niflheim é um microcosmo de uma fábrica. A maior parte usa o mesmo tipo de roupa, com a mesma cor e tem tarefas específicas designadas que devem ser cumpridas regiamente para dentro de um sistema rigorosamente controlado. Nesta cadeia, Mickey é o mais dispensável de todos. Tanto que ninguém faz o menor esforço para o salvar mesmo quando ele parece estar ainda vivo em determinadas situações.

Tudo muda, porém, quando uma de suas cópias, o 17, não é morta como se imaginava que ele seria ao se encontrar numa situação limite. Quando volta para o seu quarto, Mickey 17 se vê numa enrascada ao perceber que está deitado na sua cama o Mickey 18, a sua nova cópia. Agora eles são múltiplos e o perigo da extinção é iminente.

Curiosamente, é a existência de um clone-irmão que escancara o que já vínhamos percebendo e Pattinson soube construir com tamanha perspicácia ao longo do filme. A ideia de que cada Mickey pode ter as mesmas memórias, mas cada um deles é um indivíduo único. Apesar dos esforços externos de mostrar que um Mickey é só mais um Mickey e, portanto, irrelevante, cada um tem um traço único, uma característica de personalidade que o anterior não tinha. E isso fica mais cristalino quando 17 e 18 coexistem. O Mickey 17 é um people pleaser que evita conflitos e tenta cuidar da sua vida e das suas tarefas sem aparecer muito. Mickey 18 é agressivo, confiante e não leva desaforo para casa. E cada Mickey de Pattinson tem um detalhe diferente que o torna único e cuja vida não merecia ser tão desprezada e jogada no lixo como o sistema tenta fazer com que acreditemos.

Se Mickey é a metáfora da precarização do trabalho e a efemeridade da vida. Marshall é o símbolo do poder que constrói esta sociedade decadente e caótica. Interpretado de forma provocadora e caricatural por Ruffalo, Marshall é o exemplo cristalino do governante idiota, ignorante, incapaz de coordenar ideias que infelizmente temos visto com extrema frequência em posições de poder pelo mundo. Um dos exemplos cristalinos disso está na forma como Marshall lida com os seres vivos que habitam Niflheim, a ponto de, no momento mais desenhado possível do filme, chamar os seres de extraterrestes apenas para ser corrigido por um membro da tripulação que afirma que extraterrestes em Niflheim são os humanos.

Curioso que o adiamento do lançamento do filme em um ano o fez entrar em cartaz num momento bastante propício para traçar paralelos entre Marshall e Donald Trump. De fato, Ruffalo parece em alguns momentos emular os absurdos do atual presidente estadunidense, no que é muito bem acompanhado por Toni Collette, que faz Ylfa, a esposa de Marshall.

Quando traça estes paralelos com o sistema exploratório capitalista em que vivemos e a política estadunidense, “Mickey 17” vai bem. No entanto, o filme parece se perder um pouco quando tenta debater as questões de colonização e imigração a partir da relação dos humanos com as criaturas que habitavam Niflheim, que Marshall chama de “creepers”.

Todo este subplot se acumula no terço final do filme e se confunde com a resolução dos dramas de Mickey e Marshall e uma tentativa de golpe que surge subitamente num momento capital de “Mickey 17”. No fim, acho que faltou uma sintonia mais fina para concluir a história que vinha sendo bem desenvolvida nos dois terços anteriores do filme.

“Mickey 17” não tem o mesmo peso e a mesma excelência de “Parasita”, mas não deixa de ter reflexões igualmente importantes. É um filme menos sutil e em alguns aspectos mais expositivo do que o anterior de Bong Joon Ho. Contudo, o trabalho do diretor sul-coreano continua sendo um dos mais interessantes de se acompanhar nos últimos tempos.

Nota 7,5/10.

--

--

Marcelo Alves
Marcelo Alves

Written by Marcelo Alves

Jornalista e doutorando em Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias pela Universidade Nova de Lisboa. Aqui escrevo sobre cinema, música e cultura em geral.

No responses yet