Jornada do herói x jornada coletiva na narrativa do cinema e da TV

Marcelo Alves
35 min readJul 31, 2020

--

Primeiro filme dos Vingadores, de 2012

A transmedia ajudou a transformar a construção de narrativas e tornou-se uma tendência no cinema principalmente a partir do final do século XX. Com a ideia do universo expandido, as histórias passaram a ganhar características e estrutura narrativas diferentes da jornada do herói que nos acostumamos a ver no cinema. A ideia da construção de um universo faz com que o produto transmedia não seja projetado necessariamente a partir de causas e consequências lineares, mas numa estrutura de teia em que quaisquer dos seus filmes, séries ou qualquer outro meio que esteja envolvido na proposta sirvam ao universo da história e seja ambientado no mesmo mundo.

Isso, portanto, afeta também a forma como a história é contada. Um ponto de uma trama pode ser desvendado em um filme, enquanto outros filmes contam histórias que desenrolam outros pontos da trama até chegarmos à conclusão da trama principal em um filme em que a história toda é finalmente amarrada e concluída. Foi assim, por exemplo, com o desfecho da saga dos Skywalkers em Star Wars: Episode IX — The Rise of Skywalker. Com isso, os protagonistas de uma história podem ser coadjuvantes em outra ou eventualmente fazerem apenas uma ponta numa terceira hustória e eles eventualmente se cruzam para a resolução de uma história em comum. E por causa desta estrutura de narrativa, os projetos transmedia podem ter ajudado a transformar o mito da jornada do herói numa experiência coletiva.

Neste trabalho, levantaremos o estado da arte do conceito tradicional de jornada do herói e o colocaremos em contraste com o ainda relativamente recente conceito de jornada coletiva dentro das produções transmedia.

1. A Jornada do Herói

A jornada do herói é um conceito de jornada cíclica presente em diferentes produções de cinema e literárias ao longo da história humana. Ela é classicamente dividida em três estágios: Partida, Iniciação e Retorno. Resumidamente, a Partida é quando o herói está a iniciar a sua jornada, ele sofre algum tipo de provocação ou estímulo para sair do lugar em que está e enfrentar as intempéries que estão no seu destino dentro daquela história. A Iniciação é o estágio em que o herói enfrenta os seus mais variados desafios ao longo de sua jornada. Desafios estes que podem ser físicos (enfrentar vilões, superar obstáculos numa prova, atravessar caminhos que exijam um esforço sobre-humano, etc…) e/ou psicológicos (superar um trauma, defender uma ideia para salvar alguém, etc…). Não raro, o herói precisa lidar com ambos os desafios. Por fim, o Retorno é quando o herói volta para casa com o conhecimento adquirido em sua jornada.

Esta é uma estrutura geral do monomito, cuja tese já foi teorizada por uma série de autores que, de diferentes formas, deram a sua contribuição para a teoria ao longo do século XX. O mais célebre deles talvez seja o antropólogo e professor de mitologia comparada, Joseph Campbell. Em seu livro, o Herói de mil faces (1949), Campbell aborda o conceito do monomito dentro da narratologia da história humana, traçando um paralelo entre os mais diferentes mitos humanos — de Buda, Moisés e Cristo aos rituais vikings e de povos antigos da Oceania — e os mitos modernos, como a franquia de cinema Star Wars. Campbell defende que “em todo o mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as circunstâncias, os mitos humanos têm florescido; da mesma forma, esses mitos têm sido a viva inspiração de todos os demais produtos possíveis das atividades do corpo e da mente humanos” (Campbell 1949, 05). Ele ainda complementa dizendo que “as religiões, filosofias, artes, formas sociais do homem primitivo e histórico, descobertas fundamentais da ciência e da tecnologia e os próprios sonhos que nos povoam o sono surgem do círculo básico e mágico do mito” (Campbell 1949, 05).

Foi Campbell quem estruturou a jornada do herói, por exemplo, na estrutura tripartite de Partida-Iniciação-Retorno, o que chamou de “percurso padrão da aventura mitológica do herói” (Campbell 1949, 17) em que o herói apresenta “um afastamento do mundo, uma penetração em alguma fonte de poder e um retorno que enriquece a vida” (Campbell 1949, 20).

Campbell aponta que esta estrutura está presente em todas as histórias heróicas, e cita como exemplo os mitos gregos.

“Prometeu foi aos céus, roubou o fogo dos deuses e voltou à terra. Jasão navegou por entre as rochas em colisão para chegar a um mar de prodígios, evitou o dragão que guardava o Velocino de Ouro e retornou com o Velocino e com o poder de recuperar o trono que lhe pertencia por direito, de um usurpador. Enéias desceu ao mundo inferior, cruzou o horrendo rio dos mortos, atirou um bocado de comida embebida em uma substância calmante ao cão de guarda de três cabeças, Cérbero, e finalmente conversou com a sombra do seu falecido pai. (Campbell 1949, 18).

Embora não cite o pensamento de Aristóteles uma única vez em O herói de mil faces, a estrutura tripartite de Campbell guarda semelhança com a visão que o filósofo grego dá à arte poética em seu texto da Poética. Neste texto concebido entre os anos de 335 A.C. e 323 A.C., Aristóteles afirma que toda tragédia precisa ter um princípio, um meio e um fim para que componham o todo.

Ao comparar as definições de Campbell de Partida, Iniciação e Retorno, com o princípio, meio e fim aristotélicos, nota-se claramente una semelhança entre os conceitos. Apenas as denominações são diferentes.

Princípio, diz Aristóteles, “é o que não contém em si mesmo o que quer que siga necessariamente outra coisa e que, pelo contrário, tem depois de si algo com que está ou estará necessariamente unido” (Poética, VII, 1450b 42). Ou seja, temos aqui a saída do chamado herói da sua zona de conforto, pois aquele espaço não lhe cabe mais e ele precisa sair em busca de um desafio vindouro por necessidade ou quando é forçado a isso por elementos externos. Meio, Aristóteles continua, “é o que está depois de alguma coisa e tem outra depois de si” (Poética, VII, 1450b 42). Aqui temos exatamente o núcleo de uma história. Por mais vago que a definição de Aristóteles possa parecer, ela coincide com a Iniciação de Campbell, que é onde se passa toda a aventura do herói. Finalmente, o fim, na visão aristotélica, “é o que naturalmente sucede a outra coisa, por necessidade ou porque assim acontece na maioria dos casos, e que, depois de si, nada tem” (Poética, VII, 1450b 42), Ou seja, a conclusão da aventura, é o desfecho da jornada do herói. Os mitos, Arístóteles conclui, não devem terminar ao acaso, “mas que se conformem aos mencionados princípios” (Poética, VII, 1450b 43). Da mesma forma que o herói, na concepção de Campbell, volta para casa com os ensinamentos que recebeu em sua jornada para a conclusão do ciclo da história.

Os primeiros heróis retratados na literatura clássica são os personagens principais da Ilíada e da Odisseia, de Homero, ambos escritos no século VIII A.C. A primeira obra passa-se durante a Guerra de Tróia e trata de uma disputa entre Aquiles e Agamenon. Na aventura, o herói troiano Heitor é morto. A segunda obra trata do regresso de Odisseu, herói da Guerra de Tróia, para a sua terra natal, Ítaca. Estas jornadas, na essência, não são diferentes das de Édipo, Hamlet ou Luke Skywalker, pois as jornadas apresentam padrões semelhantes. Podem acabar com a morte do seu herói, com um desfecho enriquecedor, o herói pode passar por provações físicas, psicológicas, seguir caminhos geográfica e temporalmente completamente diferentes, mas em sua essência, o esqueleto de sua história não é diferente, pois a jornada do herói remonta aos arquétipos inerentes a história humana.

Luke Skywalker, da saga Star Wars

“Existe uma certa sequência de ações heróicas, típica, que pode ser detectada em histórias provenientes de todas as partes do mundo, de vários períodos da história. Na essência, pode-se até afirmar que não existe senão um herói mítico, arquetípico, cuja vida se multiplicou em réplicas, em muitas terras, por muitos, muitos povos. Um herói lendário é normalmente o fundador de algo, o fundador de uma nova era, de uma nova religião, uma nova cidade, uma nova mobilidade de vida. Para fundar algo novo, ele deve abandonar o velho e partir em busca da ideia semente, a ideia germinal que tenha a potencialidade de fazer aflorar aquele algo novo” (Campbell 1988, 150).

Não é por acaso que a palavra arquétipo tenha sido citada por Campbell em sua definição. Uma das bases que estruturam a sua tese de que a história do herói se repete ininterruptamente ao longo da história humana é a teoria do arquétipo que começou a ser desenvolvida pelo psicólogo Carl Gustav Jung ainda nos anos 30 e culminou com a publicação do livro Os arquétipos e o inconsciente coletivo (1959).

Para Jung, todo ser humano tem uma camada superficial de inconsciente individual que repousa sobre uma camada mais profunda que ele denomina de inconsciente coletivo. Esta camada mais profunda “já não tem sua origem em experiências ou aquisições pessoais, sendo inata” (Jung 1976, 16). Jung entende que todos compartilham deste inconsciente coletivo, ou seja, o inconsciente coletivo é um “substrato psíquico comum de natureza psíquica suprapessoal que existe em cada indivíduo” (Jung 1976, 16). É importante entender precisamente a definição de inconsciente coletivo de Jung para compreender que as teorias de Campbell dialogavam com a pesquisa do psicólogo. Para Jung, “o inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal” (Jung 1976, 53). Ele afirma ainda que “os conteúdos do inconsciente coletivo nunca estiveram na consciência e, portanto, não foram adquiridos individualmente mas devem sua existência apenas à hereditariedade” (Jung 1976, 53).

Aos conteúdos do inconsciente coletivo, Jung denominou arquétipos e afirmou que estes constituem “um correlato indispensável da ideia do inconsciente coletivo, indica a existência de determinadas formas na psique, que estão presentes em todo tempo e em todo lugar” (Jung 1976, 53). Para Jung, há tantos arquétipos quanto situações na vida e todos os seres humanos têm representações e arquétipos coletivos.

“ Minha tese é a seguinte: à diferença da natureza pessoal da psique consciente, existe um segundo sistema psíquico, de carácter coletivo, não-pessoal. ao lado do nosso consciente, que por sua vez é de natureza inteiramente pessoal e que — mesmo quando lhe acrescentamos como apêndice o inconsciente pessoal — consideramos a única psique passível de experiência. O inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente, mas é herdado. Ele consiste de formas preexistentes, arquétipos, que só secundariamente podem tomar-se conscientes, conferindo uma forma definida aos conteúdos da consciência” (Jung 1976, 54).

Resumidamente, a ideia de Jung é que temos arquétipos na sociedade que vamos carregando inconscientemente através das gerações. Isso deu origem aos mitos. Ou até os mitos originaram os arquétipos. Mas são estes mitos que retratam figuras arquetípicas que vão ser estudados por Campbell e fundamentarão a sua teoria da jornada do herói.

“A mentalidade primitiva não inventa mitos, mas os vivencia. Os mitos são revelações originárias da alma pré-consciente, pronunciamentos involuntários acerca do acontecimento anímico inconsciente e nada menos do que alegorias de processos físicos. Tais alegorias seriam um jogo ocioso de um intelecto não científico. Os mitos, pelo contrário, têm um significado vital. Eles não só representam, mas também são a vida anímica da tribo primitiva, a qual degenera e desaparece imediatamente depois de perder sua herança mítica, tal como um homem que perdesse sua alma. A mitologia de uma tribo é sua religião viva, cuja perda é tal como para o homem civilizado, sempre e em toda parte, uma catástrofe moral. Mas a religião é um vínculo vivo com os processos anímicos, que não dependem do consciente, mas o ultrapassam, pois acontecem no obscuro cenário anímico. Muitos desses processos inconscientes podem ser gerados indiretamente por iniciativa da consciência, mas jamais por arbítrio consciente. Outros parecem surgir espontaneamente, isto é, sem causas discerníveis e demonstráveis pela consciência” (Jung 1976, 156).

Em A jornada do escritor (2007), o escritor Christopher Vogler já havia traçado este paralelo entre Campbell e Jung ao lembrar que os arquétipos são personagens que se repetem constantemente nos sonhos de todos e em mitos de todas as culturas.

“Os personagens repetidos do mito mundial como o jovem herói, o velho sábio ou a velha sábia, o camaleão e o antagonista sombrio são as mesmas figuras que aparecem repetidamente em nossos sonhos e fantasias. Por isso os mitos e a maioria das histórias construídas segundo o modelo mítico são psicologicamente verossímeis. (…) Por essa razão, essas histórias têm força universal. Narrativas construídas segundo o modelo da Jornada do Herói contam com um apelo que pode ser sentido por todos, pois jorram de uma fonte universal do inconsciente compartilhado e refletem as preocupações universais. Elas lidam com questões universais que parecem infantis: quem sou? De onde vim? Para onde vou quando morrer? O que são o bem e o mal? O que preciso fazer quanto a isso?” (Vogler 2007, 28).

Para Vogler, as ideias de Campbell em O herói de mil faces ajudam a compreender quase todos os problemas humanos. “São a grande chave para a vida e também o principal instrumento para lidar de forma mais eficiente com um público massificado” (Vogler 2007, 28).

Mas antes de avançarmos mais sobre as ideias de Vogler e os paralelos que ele traçou entre a sua jornada do herói e a jornada do herói traçada por Campbell, é preciso voltar um pouco às afluências entre Campbell e Jung. O próprio professor de mitologia comparada, em entrevista a um programa de TV comandado pelo jornalista Bill Moyers, posteriormente registrada no livro O poder do mito, publicado em 1988, falou da importância de Jung para a questão da interpretação de toda a mitologia envolvendo o herói a partir das ideias de arquétipos, que ele define como “ideias elementares” (Campbell 1988, 62). “Em todo o mundo e em diferentes épocas da história humana, esses arquétipos, ou ideias elementares, aparecem sob diferentes roupagens. As diferenças nas roupagens decorrem do ambiente e das condições históricas” (Campbell 1988, 62).

Jung e Campbell também se encontram quando buscamos uma definição do herói. Campbell define o herói como “o homem da submissão autoconquistada” (Campbell, 1949, 12), aquele que “conhece e representa os apelos da supraconsciência — que é, ao longo da criação, mais ou menos inconsciente” (Campbell 1949, 142). O herói é também “aquele que desperta a própria alma, não é mais que o meio conveniente de sua própria dissolução” (Campbell 1949, 142). Por fim, Campbell ainda afirma que o herói morre como homem moderno, mas renasce na eternidade.

“O herói, por conseguinte, é o homem ou mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas. As visões, idéias e inspirações dessas pessoas vêm diretamente das fontes primárias da vida e do pensamento humanos. (…) O herói morreu como homem moderno; mas, como homem eterno — aperfeiçoado, não específico e universal — , renasceu. Sua segunda e solene tarefa e façanha é, por conseguinte (como o declara Toynbee e como o indicam todas as mitologias da humanidade), retornar ao nosso meio, transfigurado, e ensinar a lição de vida renovada que aprendeu”. (Campbell 1949, 13).

Jung vê o herói como um indivíduo cuja natureza humana está em sua sobrenaturalidade, “representando desta forma uma síntese do inconsciente (“divino”, isto é, ainda não humanizado) e da consciência humana” (Jung 1976, 167). Seu ato principal, diz Jung, é vencer o monstro da escuridão, ou seja, fazer o inconsciente sucumbir à consciência. “Há uma tendência compensatória em nossa psique inconsciente para produzir um símbolo do si-mesmo em seu significado cósmico. Estes esforços ocorrem nas formas arquetípicas do mito do herói” (Jung 1976, 172).

Toda definição de herói não foge muito destas abordagens tradicionais. No artigo “Harry Potter e a jornada do herói: receita do sucesso das literaturas de massa”, Sandra Venancio Kezen Buchaul define o herói da seguinte maneira:

“O herói é um ser transitório, uma personalidade quase mágica que nos fascina porque personifica o desejo e a figura ideal do ser humano. Ele defende a nossa causa e por isso identificamo-nos com ele. A luta heróica possibilita a superação dos medos, compensação das mágoas, humilhações e a expressão da raiva. É a transcendência dos impulsos em busca da totalidade ou “significado”. Ele se atreve a viver a vida, em vez de fugir dela. Supera o profundo medo diante do estranho, do desconhecido e do novo. Trilha caminhos que, por um lado, tememos, mas que, por outro, percorreríamos prazerosamente em segredo (…) Ele representa características fundamentais de que precisamos para o domínio da vida e o embate criativo com a nossa existência” (Buchaul, 2009).

Christopher Vogler vê o herói sob os signos da abnegação e do sacrifício. Para o autor de A jornada do escritor, o herói “é alguém que está disposto a sacrificar suas próprias necessidades em favor dos outros, como um pastor que se sacrifica para proteger e servir seu rebanho” (Vogler, 2007, 43). O herói, ele diz, deve sempre abrir mão de algo de valor para ele. Muitas vezes isso é a sua própria vida, como vemos nas histórias clássicas do teatro grego ou de Shakespeare. Mas tudo acontece em busca de um ideal.

Vogler acredita que há dois tipos essenciais de heróis: os voluntários, que se entusiasmam e são comprometidos com a aventura e aqueles que precisam ser empurrados a contragosto para a aventura. São os chamados anti-heróis.

Como trabalha com roteiro de cinema, Vogler também vê uma função objetiva para o herói. A de se identificar com o público.

“O objetivo dramático do herói é abrir ao público uma janela para a história. Cada pessoa que ouvir uma história ou assistir a uma peça ou filme é convidada, nos primeiros estágios da narrativa, a identificar-se com o Herói, fundir-se a ele e enxergar o mundo da história através de seus olhos. Narradores fazem isso ao dar a seus Heróis uma combinação de qualidades, uma mistura de características universais e únicas. Heróis têm qualidades com que todos podemos nos identificar e nas quais nos reconhecemos. São estimulados por impulsos universais que todos podemos entender: o desejo de ser amado, compreendido e bem-sucedido, de sobreviver, de ser livre, de se vingar, de consertar erros e injustiças ou de buscar a autoexpressão” (Vogler 2007, 44).

Resumindo, portanto, o herói é a manifestação de todo ser humano de seguir em busca de algo maior. Ou como afirmam David Hartman e Diane Zimberoff no artigo “The Hero´s journey of self-transformation: models of high development from mythology”, o herói sempre “sente insatisfação com a vida no mundo convencional do lar, da família, da cultura, e anseia e procura algo mais (…) O herói é aquela parte de nós qu diz “Sim!” à vida, que abraça os desafios da vida e que sempre quer crescer, melhorar e contribuir mesmoao custo de passar pelo inferno”. (Hartman e Zimberoff, 2009)

2. Propp e a morfologia de uma jornada

Entendemos que dentro da cultura ocidental, a jornada do herói se apresenta nos mais diferentes aspectos vindo de Aristóteles e Homero, a Jung e Campbell e chegando até as teorias de Vogler já entre o final do século XX e o início do século XXI. Mas há um braço importante nesta genealogia da jornada do herói. A presença de um personagem relevante dentro dos estudos da narratologia: o estruturalista russo Vladimir Propp.

Antes de Campbell, Propp procurou dissecar os enredos de uma história a partir do estudo de contos populares russos. Seu objetivo era identificar elementos narrativos mais simples e indivisíveis, ou uma espécie de modus operandi a partir de um acervo de 100 contos tradicionais de magia publicados na Rússia.

E de facto Propp encontrou elementos comuns que o levaram a desenvolver uma estrutura padrão das histórias tradicionais russas desenvolvida no livro Morfologia do conto maravilhoso, publicado originalmente em 1928.

Este trabalho é considerado fundamental dentro dos estudos da narrativa e causou muito impacto entre os estudiosos quando começaram a surgir traduções em inglês na Europa a partir da década de 60 do século passado.

Propp acreditava que o seu método de análise do folclore russo a partir dos personagens e suas funções poderia servir para analisar toda produção cultural. Em nenhum momento do livro ele usa a expressão “jornada do herói”, contudo, mais a frente na sua teoria veremos que há muitas semelhanças entre os métodos de Campbell e Vogler com os de Propp.

Ao analisar os contos populares russos, Propp demonstrou que todos possuem um núcleo simples composto de 31 funções agrupadas em personagens presentes em sete esferas de ação. As 31 funções presentes nos contos históricos são: Ausência, Proibição, Violação da Proibição, Reconhecimento, Entrega, Truques, Cumplicidade, Vilania ou Falta, Mediação, Começando a oposição, Partida, Primeira função do doador, Reação do herói, Recepção de um agente mágico, Orientação, Libertação, Marca, Vitória, Liquidação, Retorno, Compromisso, Resgate, Chegada não reconhecida, Reclamações sem razão, Tarefa Difícil, Solução, Reconhecimento, Exposição, Transfiguração, Punição e Casamento.

Propp ressalta que algumas destas funções podem não ocorrer nesta ordem e até mesmo em uma ou outra história haver ausência de uma ou mais funções, mas na essência ele entende que a grande maioria das histórias contem estes elementos. Elementos estes que estão agrupados dentro das esferas de ação de sete personagens: o vilão, o expedidor, o auxiliar, a princesa ou o pai, o doador, o herói e o falso herói.

O vilão é o personagem maligno que cria as dificuldades para o herói. O expedidor é o personagem que pauta a necessidade de que o herói saia em uma missão e o manda embora. Há diversos personagens na história que ocupam este papel. Ele pode ser uma figura paterna, pode ser um chefe, um general do exército. É sempre alguém que força o herói e sair em sua jornada.

O auxiliar é, em geral, uma entidade tipicamente mágica que surge no decorrer da história para ajudar o herói dentro da sua busca. Já o doador é o que dá ao herói algum objeto mágico.

A princesa é o prêmio do herói. Muitas vezes este prêmio não é necessariamente uma princesa, mas aqui ela representa a figura do prêmio conquistado pelo herói ao fim de sua jornada. E este prêmio não têm de ser um casamento com a pessoa amada, mas pode ser um reencontro com o pai, uma premiação financeira, uma posição política conquistada, um emprego dos sonhos alcançado. Este personagem, portanto, representa o fim da jornada do herói, quando ele derrota o vilão e conquista o prêmio desejado.

O herói é aquele que reata as ações de todos os personagens que o circundam, enquanto o falso herói é aquele que procura assumir o crédito pelas ações do herói e tenta se casar com a princesa, tentando trapacear o herói.

É importante ressaltar que em muitas histórias o vilão e o falso herói costumam ser os mesmos personagens. Da mesma forma que estes sete papéis também podem ser distribuídos por mais personagens. Uma história pode ter dois ou três doadores, dois expedidores, vários auxiliares. Mas Propp acredita que estas são as funções básicas dos personagens em todas as histórias.

“O conto maravilhoso atribui frequentemente ações iguais a personagens diferentes. (…) Lembremos que a repetição de funções por personagens diferentes foi observada há bastante tempo pelos historiadores das religiões nos mitos e nas crenças, mas não pelos historiadores do conto maravilhoso. Assim como as propriedades e funções dos deuses se deslocam de uns para outros, chegando finalmente até os santos do Cristianismo, as funções de certos personagens dos contos maravilhosos se transferem para outros personagens. Antecipando, podemos dizer que existem bem poucas funções, enquanto que os personagens são numerosíssimos. Isso explica o duplo aspecto do conto maravilhoso: de um lado, sua extraordinária diversidade, seu caráter variegado. Do outro, sua uniformidade, não menos extraordinária, e sua repetibilidade” (Propp 2001, 16 e 17).

Ao longo de Morfologia do conto maravilhoso, Propp vai definindo e dissecando as 31 funções e os papéis dos personagens dentro das funções. Não é necessário neste momento detalhar uma a uma, posto que está tudo descrito no seu livro. Mas é importante ressaltar, dentro do conceito de herói, e muito antes de Vogler, Propp já havia definido que há dois tipos de heróis: os buscadores e os heróis-vítima. A diferença entre eles, basicamente é a mesma estabelecida por Vogler quando definiu que existem os heróis e os anti-heróis. E a diferença entre estes está na atitude mais proativa ou reativa dentro da sua jornada específica. O primeiro, portanto, age quando provocado, enquanto o segundo reage a algo que sofreu. “O herói do conto de magia pode ser tanto o personagem que sofre a ação do antagonista-agressor (ou que sofre uma carência) no momento em que se tece a intriga, como também o personagem que aceita reparar a desgraça ou atender às necessidades de outro personagem”. (Propp 2001, 30).

Ao detalhar todas as funções e personagens, Propp conclui que a ação de todas as histórias se dá dentro dos limites por ele estabelecidos. “Além disso, alinhando sucessivamente todas as funções, vemos com que necessidade lógica e artística cada função se desprende da precedente” (Propp 2001, 36). Propp afirma ainda que “uma função não exclui a outra” (Propp 2001, 36) e “todas elas pertencem ao mesmo eixo e não a vários eixos diferentes” (Propp 2001, 36).

Propp afirma ainda que as funções nem sempre seguem imediatamente umas às outras, mas elas estão sempre conectadas através das ações dos personagens.

“Um personagem toma conhecimento de alguma coisa através de outros personagem e isto liga a função precedente à função que vem a seguir. Mesmo que os personagens, para começar a agir, devam, por um lado, conhecer alguma coisa (uma informação, uma conversação surpreendida, sinais sonoros, queixas, calúnias etc…), por outro lado cumprem também frequentemente suas funções pelo ato de terem visto alguma coisa”. (Propp 2001, 41).

3. Os passos da jornada do herói

É inegável a importância de Propp para os estudos das narrativas e para o entendimento da teoria da jornada do herói. E o modelo de Vogler em A jornada do escritor é um exemplo disso. Embora Campbell não cite em nenhum dos seus trabalhos o folclorista russo — e, de facto, não há qualquer registro que um tenha conhecido o trabalho do outro — ambos chegaram a conclusões muito semelhantes.

Em O herói de mil faces, Campbell estabelece os estágios da aventura do herói em 18 passos separados por três grupos. No grupo 1, o da Partida, temos o Mundo Cotidiano, Chamado à Aventura, Recusa do Chamado, Ajuda sobrenatural, Travessia do Primeiro Limiar e Barriga da baleia. No estágio 2, o da Iniciação, temos Estrada de Provas, Encontro com a Deusa, A mulher como tentação, Sintonia com o pai, Apoteose e A grande conquista. Por fim, temos o estágio 3, o do Retorno, onde encontramos a Recusa do Retorno, Voo Mágico, Resgate Interior, Travessia do Limiar, Senhor de Dois Mundos e Liberdade para Viver.

Não iremos conceitualizar cada um destes aspectos, pois isto pode ser encontrado detalhadamente em O herói de mil faces, mas é importante ressaltar que toda esta travessia gira em torno do problema enfrentado pelo herói e do que ele busca na história. Campbell assim resume o problema do herói:

“O problema do herói consiste em penetrar em si mesmo (e, por conseguinte, penetrar no seu mundo) precisamente através desse ponto em abalar e aniquilar esse nó essencial de sua limitada existência. O problema do herói que vai ao encontro do pai consiste em abrir sua alma além do terror, num grau que o torne pronto a compreender de que forma as repugnantes e insanas tragédias desse vasto e implacável cosmo são completamente validadas na majestade do Ser. O herói transcende a vida com sua mancha negra peculiar, e, por um momento, ascende a um vislumbre da fonte. Ele contempla a face do pai e compreende. E, assim, os dois entram em sintonia”. (Campbell 1949, 81).

Campbell afirma ainda que o herói busca “o poder de sua substância sustentadora” (Campbell 1949, 96). É uma busca do que ele chama de o imperecível. E que Campbell vê replicar em inúmeros mitos por ele estudados.

“Essa é a energia miraculosa dos relâmpagos de Zeus, de Jeová e do Supremo Buda, a fertilidade da chuva de Viracocha, a virtude anunciada pelo sino tocado na missa no momento da consagração, assim como a luz da iluminação última do santo e do sábio. Seus guardiões só ousam liberá-la para aqueles que verdadeiramente mostraram ser dignos dela. Mas os deuses podem ser excessivamente rigorosos e cautelosos. Nesse caso, o herói deve se apossar do seu tesouro por meio de artifícios. Esse foi o problema de Prometeu. Sob essa forma, mesmo os mais elevados deuses aparecem como malignos ogros que ocultam a vida, e o herói que os engana, mata ou aplaca é honrado como o salvador do mundo”. (Campbell 1949, 96).

Ao resumir o que entende ser a jornada do herói, Campbell mostra-se estar quase que em completo alinhamento com as ideias estabelecidas por Propp em Morfologia do conto maravilhoso.

“O herói mitológico, saindo de sua cabana ou castelo cotidianos, é atraído, levado ou se dirige voluntariamente para o limiar da aventura. Ali, encontra uma presença sombria que guarda a passagem. O herói pode derrotar essa força, assim como pode fazer um acordo com ela, e penetrar com vida no reino das trevas (batalha com o irmão, batalha com o dragão; oferenda, encantamento); pode, da mesma maneira, ser morto pelo oponente e descer morto (desmembramento, crucificação). Além do limiar, então, o herói inicia uma jornada por um mundo de forças desconhecidas e, não obstante, estranhamente íntimas, algumas das quais o ameaçam fortemente (provas), ao passo que outras lhe oferecem uma ajuda mágica (auxiliares). Quando chega ao nadir da jornada mitológica, o herói passa pela suprema provação e obtém sua recompensa. Seu triunfo pode ser representado pela união sexual com a deusa-mãe (casamento sagrado), pelo reconhecimento por parte do pai-criador (sintonia com o pai), pela sua própria divinização (apoteose) ou, mais uma vez — se as forças se tiverem mantido hostis a ele - — , pelo roubo, por parte do herói, da bênção que ele foi buscar (rapto da noiva, roubo do fogo); intrinsecamente, trata-se de uma expansão da consciência e, por conseguinte, do ser (iluminação, transfiguração, libertação). O trabalho final é o do retorno. Se as forças abençoaram o herói, ele agora retorna sob sua proteção (emissário); se não for esse o caso, ele empreende uma fuga e é perseguido (fuga de transformação, fuga de obstáculos). No limiar de retorno, as forças transcendentais devem ficar para trás; o herói reemerge do reino do terror (retorno, ressurreição). A bênção que ele traz consigo restaura o mundo (elixir)” (Campbell 1949, 137).

Em A jornada do herói como vivência e não como narrativa, Robson Rodrigues dos Santos e Jean Pierre Chauvin, traçam um paralelo entre os 18 passos de Campbell e as 31 funções de Propp e concluem que as diferenças entre eles são quase insignificantes.

Basicamente, o que Propp não tem é que é tratado por Campbell é o estágio da Recusa ao Chamado. E isto se dá pela característica própria dos contos de magia russo analisados pelo folclorista. Seus heróis nunca recusam um chamado a aventura. Do restante analisado, algumas funções tem mais importância em Propp do que em Campbell e vice-versa, mas há sempre a presença delas.

Com isso, pode-se concluir que Propp e Campbell chegaram a resultados muito semelhantes dentro do que se propuseram a estudar, os contos de magia russo e as análises dos mitos, respectivamente.

“Um possível fator que contribuiu para evidenciar tais similaridades é o fato de ambos terem utilizado objetos de estudo semelhantes para suas análises, pois não existem registros demonstrando que um autor conhecia o trabalho do outro, ou até mesmo troca de informações entre eles. Tudo indica que os resultados semelhantes, alcançado por ambos, foi uma grande coincidência.

Entretanto, o fato de Campbell ter comparado os mitos às crenças religiosas e ter levado em consideração a psicologia junguiana para entender as formas do Herói em cada sociedade, elevou a Jornada do Herói a um patamar que jamais a narrativa irá alcançar, pois não é objetivo deste. É neste ponto que narrativa e Jornada do Herói se diferenciam” (Santos e Chauvin 2014, 105).

Décadas depois dos estudos de Propp e Campbell, Vogler procurou traçar uma nova coletânea de passos. Em A jornada do escritor, o escritor e roteirista americano resumiu como sendo 12 os estágios da Jornada do Herói: Mundo Comum, O Chamado a aventura, Reticência do herói ou recusa do chamado, Encontro com o mentor ou Ajuda Sobrenatural, Cruzamento do primeiro portal, Provações, aliados e inimigos ou A Barriga da Baleia, Aproximação, Provação difícil ou traumática, Recompensa, O caminho de volta, Ressurreição do herói e Regresso com o elixir.

Como nota-se até pelos nomes dados dentro da sua classificação, Vogler bebeu na fonte de Campbell para traçar a sua ideia de jornada. Com uma carreira no cinema, especialmente ligada aos estúdios Disney, e tendo sido um dos colaboradores para o roteiro de The Lion King (1994), Vogler pensa de forma mais prática a jornada do herói. E isto se evidencia na sua definição para a teoria.

“A Jornada do Herói não é uma invenção, mas uma observação. É o reconhecimento de um belo modelo com princípios que regem a conduta da vida e do mundo das narrativas, da mesma forma que a física e a química governam o mundo físico. É difícil evitar a sensação de que a Jornada do Herói existe em algum lugar, de alguma forma como uma realidade eterna, uma forma ideal platônica, um modelo divino. A partir desse modelo, versões infinitas e extremamente variadas podem ser produzidas, cada qual reverberando o espírito essencial da forma. A Jornada do Herói é um modelo que parece se estender em muitas dimensões, expondo mais de uma realidade. Entre outras coisas, descreve de forma precisa o processo de cumprir uma jornada, as partes funcionais necessárias de uma história, as alegrias e desesperos de ser escritor e a passagem da alma pela vida”. (Vogler, 2007, 10)

Vogler reconhece a importância tanto de Campbell quanto de Propp para a questão formação da teoria da jornada do herói. Em seu livro, ele destaca o estudo dos mitos de Campbell e traça um paralelo entre Campbell e os arquétipos de Jung. E ao traçar o seu diagrama da Jornada do Herói e comparar com o de Campbell, Vogler toma a liberdade de fazer algumas alterações com o objetivo de ver isso refletido mais nas produções contemporâneas, especialmente os filmes.

Ele reconhece ainda que a jornada do herói tem uma forma universal. Elas “contam com um apelo que pode ser sentido por todos, pois jorram de uma fonte universal do inconsciente compartilhado e refletem as preocupações universais” (Vogler 2007, 28). Vogler afirma ainda que as ideias identificadas por Campbell podem ser aplicadas no sentido de compreender quase todos os problemas humanos e “são a grande chave para a vida e também o principal instrumento para lidar de forma mais eficiente com um público massificado” (Vogler 2007, 28).

4. Uma nova jornada, agora coletiva

A teoria da jornada do herói hoje em dia recebe muitas críticas por parte de estudiosos e críticos que estudam cinema, que a consideram extremamente limitadora para a construção das histórias na cultura contemporânea. O próprio Vogler, em seu livro, pontua o que críticos afirmam sobre a jornada do herói. O escritor lembra que a teoria vinha sendo criticada por incorporar a cultura do guerreiro, dominada pelo gênero masculino, além de ter virado um instrumento de propaganda inventado para incentivar jovens a se alistarem no exército. Tudo por causa da glorificação da morte e do auto-sacrifício.

Embora reconheça que há alguma verdade nestas interpretações, Vogler ressalta que pensar a jornada do herói apenas sob este espectro é entender a teoria de forma extremamente limitadora.

“O guerreiro é apenas uma das faces do herói, que também pode ser um pacifista, mãe, peregrino, bufão, andarilho, eremita, inventora, enfermeiro, salvador, artista, lunático, amante, palhaço, rei, vítima, trabalhadora, rebelde, aventureiro, um fracasso trágico, covarde, santa, monstro etc. As muitas possibilidades criativas da forma excedem muito seu potencial de mau uso”. (Vogler 2007, 15).

Julia Roberts no papel da heroína Erin Brockovich, no filme de 2000

O que Vogler faz aqui é reafirmar o que Campbell já havia dito em O herói de mil faces quando expôs que os mitos s repetem na história humana. Ou seja, a jornada do herói não é apenas o retorno heroico de Odisseu para Ítaca, na Odisseia, de Homero. É também a superação de um homem que, desempregado, vira um sem-teto, mas ao fim consegue transformar-se num empresário e corretor da bolsa de valores em The Pursuit of Happyness (2006). É ainda a busca de dois jornalistas em uma investigação que culminará no caso Watergate em All the president´s men (1976). Ou a tentativa de uma advogada de conseguir uma indenização milionária para os seus clientes depois que uma grande contaminação da água é causada por uma empresa numa cidade dos Estados Unidos em Erin Brockovich (2000).

Há mais filmes e produções baseadas na jornada do herói do que se imagina. E a maioria delas não envolve guerreiros dando a vida por uma causa nobre em uma situação limite de combate. Há mais pessoas comuns vivenciando a jornada do herói do que Rambos na história do cinema.

Muitos críticos, porém, afirmam que a teoria da jornada do herói já está obsoleta. Com a explosão da cultura transmedia e as possibilidades de interatividade e narrativa não linear, a jornada do herói estaria ultrapassada. O próprio Vogler comenta isso em seu livro.

“Segundo esse grupo de críticos, as ideias antigas da Jornada estão irremediavelmente atoladas nas convenções de início, meio e fim, de causa e efeito, de eventos sequenciais. A nova onda, dizem eles, destronaria o antigo narrador linear, capacitando as pessoas a contar suas histórias em qualquer sequência que quiserem, saltando de um ponto para outro e tecendo histórias mais como teias de aranhas e não como fios lineares de eventos. É verdade que possibilidades novas e empolgantes foram criadas pelos computadores e pelo pensamento não linear que eles incentivam. No entanto, sempre existirá o prazer do “Conte uma história”. As pessoas gostam de entrar no transe de uma narrativa e se permitir ser guiadas através do que conta um mestre em tecer narrativas”. (Vogler 2007, 16).

Em parte, Vogler está certo. E se é preciso buscar um exemplo prático do sucesso deste modelo, basta vermos os vencedores das ultimas dez edições do Oscar. Nove deles seguem, de alguma forma, a jornada do herói: Parasite (2019), Green Book (2018), The shape of water (2017), Spotlight (2015), Birdman (2014), Twelve years a slave (2013), Argo (2012), The Artist (2011) e The King´s Spech (2010). A única exceção que mostra um filme com uma linguagem mais não linear e a tentativa de contar uma história de uma outra forma é Moonlight, vencedor de 2016.

Nesta pequena lista, há filmes considerados pela crítica bons e ruins. Importantes ou irrelevantes. O que comprova que o modelo da Jornada do Herói não necessariamente significa sinônimo de cinema mal feito ou meramente comercial, com toda a carga negativa que críticos costumam dar ao chamado cinema comercial.

Por outro lado, de facto, o surgimento de novas tecnologias e o aprimoramento destas mesmas, bem como a tentativa de buscar narrativas mais não-lineares para as produções culturais ajudou a criar novas possibilidades de contar uma história. Especialmente com a cultura transmedia, tão dissecada e conceitualizada por Henry Jenkins nos livros Cultura da Convergência (2009) e Cultura da Conexão (2015), a ideia do monomito pode ter se transformado e novas propostas surgiram para trazer mais diversidade ao ato de contar histórias.

Aliado à cultura transmedia, temos a ideia de universo, cujo arco narrativo não se baseia tanto no modelo de história fechada que cumpre os passos descritos por Campbell ou Vogler. Num universo transmedia, cada personagem tem um papel importante dentro da busca de um bem coletivo e é relativamente afastada a ideia do salvador do dia, o que é muito comum na jornada do herói.

Ao quebrar a ideia do monomito, a narrativa transmedia tenta apresentar uma jornada de múltiplas personagens que, eventualmente, se reúnem no percurso desta mesma jornada para a resolução de um problema comum. Ou seja, a solução do problema viria através de uma jornada coletiva.

Dentro da transmedia, é natural que o universo se sobreponha à história individual. E, consequentemente, que a história deste universo seja mais relevante do que a jornada de um indivíduo. Ao contrário da jornada do herói, a jornada coletiva e o universo construído oferecem alternativas. Deixam propositalmente pontas soltas e portas abertas para que os caminhos possam seguir múltiplas direções. E isso traz um grau de imprevisibilidade à história em comparação com o que nos acostumamos a ver na jornada do herói.

Há poucos trabalhos que falem especificamente sobre a questão da jornada coletiva nas produções de cinema e TV, mas alguns especialistas em universos transmedia entendem que a jornada coletiva é o novo estágio dos estudos da narrativa e uma nova forma de se construir histórias. Não que a jornada do herói deixará de ser o centro das atenções, e os filmes vencedores do Oscar comprovam isso, mas existe uma nova camada a ser compreendida e que foi trazida pelas novas tecnologias, pela mudança do paradigma do comportamento da audiência, deixando de ser meramente espectadora para tornar-se mais participativa, e que vem sendo aplicada com profundidade pelos universos transmedia. Mas não somente por eles. Se isto vem se tornando uma tendência no chamado cinema de blockbusters, há ainda outros trabalhos, especialmente na TV, que estão aplicando o modelo da jornada coletiva.

O escritor e produtor transmedia Jeff Gomez é uma das principais vozes que estudam a jornada coletiva. Ele defende que muitas produções atuais abandonaram a jornada do herói e que, hoje, muitas histórias de sucesso não são compostas por uma personagem que vai salvar alguém ou o mundo. “Essas histórias não são sobre o eterno retorno glorioso dos heróis. Trata-se de comunidades que lutam para alcançar a eficácia através do poder de sua própria diversidade” (Gomez, 2017). Gomez complementa ainda dizendo que “as histórias de jornada do herói são sobre como o indivíduo se atualiza ao alcançar uma mudança pessoal”, enquanto “as histórias da jornada coletiva[1] são sobre como as comunidades se atualizam em sua tentativa de alcançar uma mudança sistêmica” (Gomez, 2017).

Não há, portanto, um salvador. A resolução do problema deve vir através de uma jornada coletiva. “Os desafios sistêmicos não podem ser verdadeiramente resolvidos por um lado, derrotando todos os outros, ou por um lado, resolvendo a crise sozinhos. Tentar fazê-lo à custa de todos os outros poderia ser apocalíptico” (Gomez, 2017).

A série “Euphoria”, um exemplo de jornada coletiva

Para Gomez, a TV tem investido muito e tido retorno de sucesso em modelos de jornada coletiva. Ele cita como exemplos as séries Game of Thrones (2011–2019), Walking Dead (2010-), Orange is the new black (2013–2019), Westworld (2016-), Euphoria (2019-) e The Deuce (2017–2019). “Essas histórias nos dizem que, se estamos esperando um salvador, estamos nos condenando à destruição, e erguer um em seu lugar pode ser tão ruim quanto. Nós, coletivamente devemos nos tornar nossa própria salvação”. (Gomez, 2017)

Curiosamente, um dos trabalhos citados por Gomez, The Deuce, é do escritor e roteirista David Simon, que é um especialista em construir histórias de jornada coletiva, com uma perspectiva multilateral e sem a figura de um herói que irá salvar o dia. São assim as séries The Wire (2002–2008), sobre a cidade de Baltimore, e Treme (2010–2013), sobre a New Orleans após a tragédia do furacão Katrina, assim como as minisséries The Corner (2000), sobre uma família que lida com o problema do vício em drogas e com o crime em Baltimore, e Generation Kill (2008), sobre a invasão americana do Iraque.

Para a produtora Maya Zuckerman, a jornada coletiva veio trazer diversidade não apenas à narrativa, mas também de personagens e histórias para o cinema e a TV.

“A jornada coletiva é uma experiência não-linear, multiplataforma física e digital de várias pessoas, grupos, tribos, culturas, redes, reunidos para um propósito maior e uma causa comum. Em suas jornadas, eles vão além de suas próprias experiências individuais para um coletivo coeso que é a soma de todos os indivíduos e também toda uma nova entidade. Eles se movem entre interações físicas no espaço real para interações digitais online no ciberespaço. Nossas jornadas ao espaço sideral, avanço tecnológico, vidas móveis e urbanas e internet criaram as circunstâncias para o surgimento da jornada coletiva” (Zuckerman, 2017).

Zuckerman vê a jornada coletiva como uma importante ferramenta para conectar pessoas, inclusive em outras áreas que não a narrativa audiovisual. Ela entende a jornada coletiva como uma metáfora da ascensão da humanidade à idade adulta, onde se devem “convergir muitas vozes de diferentes gêneros, etnias, idades e opiniões de maneira não-linear” (Zuckerman, 2017). Ela ainda vê ser necessário passar da jornada do herói individual para o que chama de um coletivo coeso, “um conjunto de diferentes arquétipos que se reúnem em um determinado momento no tempo, fortalecido por sua própria jornada com cada indivíduo trazendo seus próprios dons pessoais para uma causa superior” (Zuckerman, 2017).

No cinema, este modelo citado por Zuckerman é visto mais claramente no Universo Cinematográfico da Marvel. Ao criar o arco da chamada Saga do Infinito, que durou um total de 11 anos, o estúdio construiu uma estrutura narrativa nunca antes vista na história do cinema. Uma história transmedia e de jornada coletiva extremamente conectada ao longo de 23 filmes e três fases que começou com Iron Man (2008) e teve o seu epílogo em Spider-Man: Far from Home (2019).

Dentro da Saga do Infinito, a Marvel construiu uma história em uma estrutura de teia em que quaisquer dos seus filmes poderiam apresentar uma série de personagens completamente diferentes, mas todos faziam parte do mesmo mundo. Além disso, as histórias eram criadas a partir de diferentes olhares, fazendo com que o protagonista de um filme fosse o coadjuvante em outro ou aparecesse apenas numa ponta ou cena específica num terceiro filme. Com isso, vimos uma experiência coletiva dos personagens envolvidos na saga que culminou no confronto com o vilão Thanos nos filmes Avengers: Infinity War (2018) e Avengers: Endgame (2019).

O Homem de Ferro no final de sua jornada em “Avengers: Endgame”

Na Saga do Infnito acompanhamos a trajetória de pelo menos seis personagens — Thor, Iron Man, Captain America, Hulk, Black Widow e Hawkeye — com arcos narrativos e protagonismos próprios que, em determinados momentos se reuniam para a resolução de um problema comum. Estas “reuniões” aconteciam sempre nos filmes dos Vingadores da franquia. Além dos já citados Infinity War e Endgame, os filmes Avengers (2012), Avengers: Age of Ultron (2015) e Captain America: Civil War (2016).

Além destas personagens, havia ainda uma gama de outras personagens secundárias com arcos narrativos e protagonismo dentro de seus filmes que também cumprem suas jornadas que não necessariamente passam por todos os estágios da jornada do herói, mas servem à história maior construída pelo universo. São eles: Black Panther, Doctor Strange, Spider-Man, Ant-Man, Guardians of the Galaxy e Captain Marvel. Eventualmente, alguns destes assumirão o protagonismo nas próximas fases do Universo Marvel, que já tem mais 11 filmes anunciados até 2023 e devem apontar para uma nova saga de jornada coletiva, uma vez que a primeira experiência da Marvel foi comercialmente bem sucedida.

A TV e o cinema, portanto, tem dado mostras de que a experiência da jornada do herói não reina mais sozinha nas narrativas. E a construção de jornadas coletivas vem ganhando cada vez mais espaço, ainda que a construção de tais histórias sejam mais complicadas e necessitem de mais tempo de execução e desenvolvimento de personagens. Mas o crescimento de universos transmedia — além da Marvel, há o da DC, de Star Wars e o de Harry Potter, por exemplo — bem como o sucesso de séries de TV mostram que a aposta na jornada coletiva está só começando.

Conclusão

A jornada do herói é um modelo ultrapassado? Seria leviano afirmar isso. Até porque a jornada do herói é um reflexo da própria história humana, como vimos nos estudos dos mitos de Joseph Campbell e dos contos de magia de Vladimir Propp. Todos nós somos os heróis de nossa própria jornada.

Exatamente por isto que a jornada do herói é um modelo de sucesso e que vai continuar reinando na indústria cinematográfica. Mas é inegável que a ascensão de novas tecnologias, a chegada dos universos cinematográficos, a transmedia e até a mudança do comportamento do espectador, tornando-se mais participativo graças às diferentes ferramentas de interação nascidas com a internet, ajudaram a transformar a relação com as obras e propiciaram o surgimento de um modelo de jornada coletiva.

A jornada coletiva é uma tentativa de construir um modelo narratológico não-linear, mas que também seja acessível ao grande público. Pois a não linearidade sempre foi uma marca de muitos filmes do chamado cinema de arte, ou cinema de autor, que justamente tenta se desvirtuar do conceito de jornada do herói, considerado por muitos críticos estilisticamente pobre.

Por outro lado, não há modelos fechados em caixinhas que possamos classificar de forma tão específica. Há filmes de arte que têm jornadas de herói, há jornadas do herói dentro de jornadas coletivas e há jornadas coletivas aclamadas pelos críticos mais severos.

Para Jeff Gomez, nas narrativas de jornada coletiva “fica claro que os desafios sistêmicos não podem ser realmente resolvidos com um lado derrotando profundamente todos os outros, ou com um lado resolvendo a crise sozinho. Como ilustrado até pela controversa conclusão de Game of Thrones” (Gomez, 2017).

Assim, a jornada coletiva surgiu para causar impacto no modelo linear da jornada do herói e trazer mais diversidade ao ato de contar histórias. E a julgar pelo sucesso de algumas produções de jornada coletiva nos últimos 20 anos, o público parece estar interessado, entendendo, debatendo e gostando deste novo tipo de narrar histórias.

Bibliografia:

Aristóteles. Poética. Tradução de Eudoro de Souza (1991). Lisboa: Imprensa Nacional — Casa da Moeda.

Bernhardt, William (2013). Perfecting Plot: Charting the Hero´s Journey. Oklahoma: Red Sneaker Press.

Bloom, Harold (2009). The Hero´s Journey. Nova Iorque: Bloom´s Literary Criticism.

Buchaul, Sandra Venancio Kezen (2009). Harry Potter e a jornada do herói: receita do sucesso das literaturas de massa. Campos: Universidade Estadual do Norte Fluminense.

Campbell, Joseph (1949). O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento.

Campbell, Joseph (1988). O poder do mito. São Paulo: Palas Athena.

Campbell, Joseph (1991). The Hero´s Journey. São Francisco: Harper San Francisco.

Clute, John, Nichols, Peter (1993). The Enclyclopedia of Science Fiction. Londres: Orbit.

Diarte, Rafael Mendes (2010). A jornada do herói: o monomito na ficção seriada Lost. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Evans, Elizabeth (2011). Transmedia television: Audiences, new media and daily life. Nova Iorque: Routledge.

Gomez, Jeff (2017). “The collective journey comes to television”, collective.journey.com, Fevereiro 17, 2017. https://blog.collectivejourney.com/the-collective-journey-story-model-comes-to-television-151bb4011ce2

Gomez, Jeff (2017). “The Hero´s Journey is no longer serving us”, collective.journey.com, Fevereiro 17, 2017. https://blog.collectivejourney.com/the-heros-journey-is-no-longer-serving-us-85c6f8152a50

Hartman, David e Zimberoff, Diane (2009). The Hero´s Journey of self-transformation: models of higher development from mythology. Washington: Journal of Heart-Centered Therapies.

Harvey, Colin B. (2015). Fantastic Transmedia: Narrative, play and memory across Science fiction and fantasy storyworlds. Londres: Macmillan.

Ibrus, Indrek e Scolari, Carlos A. (eds.) (2012). Crossmedia innovations. Frankfurt: Peter Lang.

Jenkins, Henry (2009). Cultura da convergência. São Paulo: Aleph.

Jenkins, Henry (2015). Cultura da conexão: criando valor e significado por meio da mídia. São Paulo: Aleph.

Jung, Carl Gustav (1976). Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes.

Klaustrup, Lisbeth, Tosca, Susana. In: Ryan, Marie-Laure e Thon, Jan-Nöel (eds.) (2014). Storyworlds across media: Toward a media-conscious narratory. Nebraska: University of Nebraska Press.

Propp, Vladimir (2001). Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

Reis, Vitória Moraes de Oliveira e Fonseca, André Azevedo (2014). O mito do herói em James Bond: uma análise da jornada do herói e seus arquétipos em Skyfall. Londrina: Universidade Estadual de Londrina.

Reitano, Leonardo (2012). A jornada do herói(?) em busca do mito aberto. São Paulo: Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.

Santos, Aitierez Sebastião e Ferreira, Leonardo Magalde (2015). A jornada do herói no cinema: considerações metodológicas acerca da saga Star Wars. Revista Eletrônica Correlatio.

Santos, Robson Rodrigues e Chauvin, Jean Pierre (2014). A jornada do herói como vivência, e não como narrativa. São Caetano do Sul: Revista de Humanidades, Tecnologia e Cultura.

Vogler, Christopher (2007). A jornada do escritor — Estrutura mítica para escritores. São Paulo: Aleph.

Zuckerman, Maya (2017). “From the Hero´s Journey to our Collective Journey”, kosmosjournal.org, Janeiro 04, 2017. https://www.kosmosjournal.org/article/transformative-media-from-the-heros-journey-to-our-collective-journey/

[1] Tradução do “collective journey” de Jeff Gomez

--

--

Marcelo Alves
Marcelo Alves

Written by Marcelo Alves

Jornalista e doutorando em Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias pela Universidade Nova de Lisboa. Aqui escrevo sobre cinema, música e cultura em geral.

No responses yet